Belmonte

Locais de intervenção: Centro histórico de Belmonte; junto ao Castelo

O contacto com o tríptico de desenvolvimento do projeto ARTÉRIA em Belmonte destacou desde logo a vontade de envolvimento da população de uma forma geral, através da sua participação na criação artística. Por outro lado, o investimento do município em equipamentos culturais nos últimos anos desenhou um conjunto de rotas de forma a ser preservada a memória cultural da comunidade. Assim sendo, pretende-se que a criação artística mobilize a participação dos agentes culturais locais num projeto que utilize o vasto levantamento do património imaterial (tradições, costumes, património oral, ofícios, etc.) já existente e que projete Belmonte no confronto com a contemporaneidade.

Voltar ao CAMINHO
por Hugo Cruz


“Aconteça o que acontecer vamos experimentar.”


Filipa Francisco durante o ensaio

 

Num tempo e espaço que reforça as nossas dúvidas, medos, inquietudes e fragilidades resta-nos a reinvenção do CAMINHO como um regresso a nós – os humanos. Este espetáculo convoca as nossas ancestralidades confrontando-as com o hoje, tantas vezes opaco, sem deixar de ensaiar a construção de outras realidades possíveis, reequacionando o lugar do “eu” e propondo um “nós”, distanciado do velho olhar identitário homogéneo.

CAMINHO iniciou-se antes da pandemia, mergulhando numa pesquisa profunda que se cruzou com as ideias de “baile” e “entrudo”. Assumindo-se, desde logo, a disputa de sentidos do que é este “estar juntos”, especialmente na celebração e catarse coletiva, supostos parênteses da vida, mas, no entanto, mais próximas desta do que muitas das rotinas cristalizadas e padrões normativos.

Este CAMINHO trouxe para a sua construção uma pandemia que nos distanciou e abalou a tirania das certezas, decidindo perante isso, não ter, serenamente, soluções. O grupo, em cocriação, construiu um espetáculo de dança com participação comunitária em que o encontro, o toque e o estar em coletivo foram colocados em causa, pelo menos da forma como os conhecíamos até então. Mesmo assim, o CAMINHO fez-se, respirando muito e bem, cruzando corpos em busca das suas origens, propondo a bailarinos e músicos, profissionais e não profissionais das artes, correr os mesmos riscos éticos e estéticos. Convocaram-se instrumentos musicais como extensões dos corpos, a tecnologia da atenção e do detalhe como parte integrante do processo, a mescla de referências, histórias, vozes e visões múltiplas e uma vontade pulsante de criar e, assim, concretizar outros “estar juntos”.

O estranhamento e a profanação conjugaram-se, para dar espaço ao novo, numa proposta para o futuro. A sensação transversal a este espetáculo-encontro é a de uma existência maior e contínua, muito para além de nós. Experimentam-se formas relacionais, de criação e decisão, ousando a construção de outras estéticas, sem medo de misturar nem a necessidade obsessiva de rapidamente nomear, numa estratégia seca de disputa. Na confiança e generosidade deste grupo, não se deixaram em nenhum momento, mesmo que inconscientemente, de ensaiar outras configurações para o fazer coletivo, pressentindo-se a emergência de micropolíticas do sensível, do cuidado e de uma participação genuína e efetiva.

É um CAMINHO mais perto do humano assumindo as tentativas, os erros, as respirações, as existências, as escutas e as diferentes velocidades da vida. O êxtase do entrudo e dos corpos em folia, a calma e paz das memórias individuais e coletivas, conjugam-se fluidamente com a disciplina e resistência inerentes ao fazer CAMINHO, que é afinal sempre um outro, ainda desconhecido. Neste espetáculo as coisas vêm de todos os lugares. Figurinos, música e dança, voz e corpo integram-se organicamente como se tivesse sido sempre assim. Identidades, máscaras, corpos, códigos, ventos, sons de diferentes tempos, espaços e velocidades arriscam-se juntos e de forma respirada na construção de uma comunidade temporária que afinal propõe a concretização de outros seres e estares, numa decisão de viver. Este é um espetáculo-desafio - voltar ao CAMINHO...o caminho do humano.

Belmonte, 19 de Agosto de 2020

Hugo Cruz

CAMINHO

de Filipa Francisco música Tiago Pereira figurinos Carlota Lagido, video Miguel Canaverde, Cenografia Matthieu Réau, máscaras Fernando Nelas com António Almeida, Beatriz Marques Dias, Bruno Alexandre, Edgar Costa, Joana Carvalho, Luísa Batista, Verónica Calheiros e Verónica González

 

 

 

Filipa Francisco 

 

 

Espetáculos

Estreia da Rede Artéria em Belmonte
Acolhimento Rede Artéria em Belmonte

Cartas

Carta de 26 de março de 2020

Para ler aqui

Carta de 18 de maio de 2020

Para ler aqui

Diário de Bordo

26 de março de 2020

Querida equipa, querido público,

desde casa, tenho Belmonte na cabeça e no corpo. Continuo a investigar. Os sons e vídeos que gravámos ajudam-me a relembrar e a continuar a imaginar a peça.
Imaginar uma peça é sempre imaginar o futuro. É sempre sobre algo que ainda nāo nasceu, que se forma a partir de várias ideias, imagens e que, depois de muitos ensaios e improvisações, acaba por ter um corpo e vontade própria.

A Queima do Entrudo

A Queima do Entrudo, pelas ruas de Colmeal da Torre, caminhando em procissão, com velas, as pessoas juntaram-se para iniciar esta procissão pagā. As crianças entre o divertido e o assustado. O padre fingido, ia parando e discursando apregoando o vinho. Bolos oferecidos, copos de vinho e chouriça como hóstia. Um homem vestido de mulher chorava o entrudo e até à queima final do boneco de palha, gritou ai o meu marido, ai o meu marido!

As mãos do Senhor Fernando Nelas

Imaginei-o com Vivaldi (na verdade sonhei com as "Quatro Estações" durante uma semana) depois o Tiago Pereira pegou no meu sonho e no vídeo do Miguel Canaverde e criou a banda sonora.

março de 2020

Do Entrudo

Do entrudo interessam-me os coros de maldizer: retirei esta frase do livro “A face do caos. Ritos de subversāo na tradiçāo portuguesa” de Aurélio Lopes:
"disfarçando a voz pela distorçāo mecânica do funil ou pelo esganiçar propositado, muitas destas acções recorrem à clandestinidade como fator indispensável do anonimato.”

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